HISTORIA DE PÃES


2011 photo collage
Vi uns quantos blogues que fizeram um balanço de 2011 e decidi que era boa ideia fazer algo do género aqui na Zine. Vamos lá deitar as mãos à massa e ver o que se faz por aqui em 2011, o que se passou nesse mundo fantástico do pão e comentar outras coisas que ficaram por dizer...
  • Em 2011, perto de 16.000 pessoas visitaram a Zine. Nunca pensei quando criei este blogue que fosse ter mais que uma dezena de aficcionados do pão como leitores, mas aparentemente 11.000 pessoas acharam que a Zine merecia uma segunda visita.
  • Tive um curso de dois dias com o Sébastien Boudet e fiquei sem palavras para descrever tudo o que foi dito e aprendi nesses dias.
  • Arrumei a minha fiel máquina de amassar e comecei a amassar à mão. A ideia era ganhar uma maior sensibilidade e percepção aos estados pelo o qual a massa passa. Talvez 2012 seja o ano em que a máquina volte à bancada da cozinha.
  • Tive a sorte de ter recebido uma amostra de sal marinho Marnoto e comecei a fazer o meu pão com sal marinho português. As minhas papilas não conseguem notar uma diferença enorme mas é uma questão de princípio, para mim, o uso de sal marinho pois contém mais nutrientes que o sal refinado e processado.
  • Recebi uma encomenda fantástica de uns 30kg de farinha da Wästgötarnas (que até hoje ainda dura...)!
  • Fui de férias pelo sul de França, visitei alguns mercados, provei pão e fiquei desapontado, visitei o Musée de La Boulangerie em Bonnieux e foi engraçado ver como pouco mudou em termos de tecnologia em tantos anos (i.e. se tivermos a falar de pão feito de moda artesanal, porque na indústria há maquinas para tudo e mais alguma coisa - o padeiro só precisa de carregar num botão).
  • A Zine de Pão apareceu pelo Facebook.
  • Zanguei-me com um artigo do Público onde se recomenda o uso de margarinapara fazer massa folhada.
Penso que foi um ano recheado de sucesso e realizações pessoais. Espero que 2012 ainda seja melhor e que possamos partilhar mais experiências, ideias e opiniões sobre esta bela arte do pão. Boas entradas! 



O Natal passou depressa mas a semana de Natal foi uma semana rica de experiências. Voltei da Le Cordon Bleu na semana de Natal e como ainda estava de férias decidi aproveitar a semana para voltar à padaria e trabalhar todas as noites dessa semana. Tive a oportunidade de escolher o horário de dia ou da noite, mas como queria experimentar como é o trabalho tradicional acabei por escolher o turno da noite que depois se verificou prolongar em alguns dias até metade do grupo do dia. A razão de ter escolhido o turno da noite é também por ter a oportunidade de estar na companhia do dono da padaria, o mestre Mattias Wallmark da Söderbergs Bageri.
O Mattias comprou a padaria, que já existe na mesma localização desde 1939, há coisa de uns anos e deu-lhe uma nova vida. Depressa se tornou das padarias mais populares desta zona de Estocolmo. Aos sábados de manhã é ver uma fila imensa de pessoas que dá a volta ao quarteirão a aguardar a vez de comprar o seu pão favorito. O Mattias é fiel à tradição e usa fermentos naturais na maior parte dos seus pães, mas também é aberto a outros tipos de fermentos e sabe utilizá-los para melhorar a qualidade do seu pão. Essa foi uma das principais lições que tive com ele. Desde há uns anos que também faz parte da equipa nacional de padeiros que vai representar a Suécia na final do campeonato mundial de panificação em Março de 2011.

A semana de Natal é por natureza uma das "piores" semanas dado o elevado volume de pão que é preciso fazer. Os suecos gostam muito das suas especialidades natalícias e por isso fizeram-se bastantes quilos de Vörtbröd, em que se usa uma espécie de xarope de açúcar chamado Vört e que é usado na fabricação de cerveja. Em português não sei o nome, vocês sabem? Além disso, temos também os famosos bolos de açafrão que são populares na época natalícia sueca: os lussekatter. Açafrão, cujo preço rondava algures os 500€/kg e portanto todo o cuidado é pouco quando se trabalha com um bem tão precioso. Na Söderbergs, para se extrair e aumentar o sabor de açafrão coloca-se os fios de açafrão num xarope de açucár aromatizado com cognac e deixa-se repousar durante umas semanas. Apesar dos turnos terem durado 10-14h por dia, acabei por sobreviver à semana de Natal e devo admitir que foi uma das semanas mais divertidas que tive.
  

Há muito para dizer sobre esta pequena pérola de padaria, mas vou tentar focar-me nos próximos paragráfos apenas nas maiores aprendizagens que recebi do Mattias e desta semana intensiva de trabalho.
  • A importância da rapidez e da técnica: Falo em especial da técnica de tender o pão aliada a uma rapidez incrédula, o outro padeiro que lá trabalha tende dois pães ao mesmo tempo em forma redonda em 20 segundos. O Mattias ainda mais rápido é. O tempo é muito importante numa padaria e quando se tendem 100 pães de uma assentada não se pode perder cinco minutos com cada pedaço de massa. Se assim for, quando se acaba de tender o pão número 100, o pão número um já fermentou demasiado. Aliás, a rapidez tem outros benefícios. Se formos rápidos a tender a massa, é necessário menos farinha sobre a bancada pois assim a massa não vai ter tempo para se colar. Eu bem tentei, mas é um acto que se tem de mecanizar e só vem com muitos meses de experiência.
  • A cada massa, o seu tratamento: Diferentes tipos de pão são tendidos de maneira diferente, não só em aspecto visual (redondos, oblíquos, "quadrados", etc.) mas também na forma como são tendidos. Se uma massa tiver uma percentagem de hidratação muito grande e se quisermos ter alvéolos grandes, é necessário ter um cuidado extremo a tender o pão. Um outro tipo de massa, como um pão enriquecido com pedaços de maçã, já não exige tantos cuidados e é tendido de outra forma.
  • O trabalho do padeiro: Após uma semana a trabalhar lado a lado com padeiros, penso que posso dizer que o principal métier de um padeiro é o de controlar a fermentação do pão. Quando se têm 10 massas diferentes a levedar, é preciso usar ou o armário de fermentação para acelerar ou o frigorífico para meter um travão na fermentação, de modo a que haja tempo e espaço no forno para se cozerem todos os pães. Para além disso, as massas comportam-se de uma maneira diferente todos os dias e o padeiro tem de conseguir perceber as mudanças do clima, o forno que hoje não está a funcionar tão bem ou a massa que não foi trabalhada o suficiente. O trabalho do padeiro é fazer uma espécie de malabarismo com todas estas variáveis e com a sua intuição e experiência controlar a levedação para produzir o pão desejado.
  • A economia de movimentos: Isto é mais ou menos um anglicismo e diz respeito ao tentar poupar o maior número de passos possíveis numa determinada tarefa. Lá está, o tempo outra vez.
  • "É lógico, não é?" Deve ter sido a frase que ouvi mais vezes cada vez que o Mattias me explicava algo, a segunda foi "Foi assim que eu te mostrei?" quando eu fazia algo mal, pois se pensarmos sobre as técnicas usadas ou a maneira que se faz um determinado passo acabamos por chegar à conclusão que é lógica que guia o trabalho de um padeiro. Não me consigo lembrar de nenhum exemplo muito bom, mas lembro-me de coisas simples como "O forno está vazio, vamos ver se há alguma coisa no armário de fermentação que já esteja fermentado. É lógico, não é?".
  • Levedar o pão somente com isco ou não - eis a questão: Este foi um assunto que discuti com o Mattias durante as horas de trabalho. Ultimamente no blogue só tenho feito posts com receitas de pão que usam fermento natural e tenho deixado de lado outros tipos de levedação. Muitas vezes evoquei para mim próprio que assim "é que era" pois era como a tradição o ditava. Até fiz croissants com fermento natural. No entanto, se me meter a pensar nesta história dos croissants, não estou a respeitar em nada a tradição, pois os croissants são tradicionalmente levedados com fermento de padeiro. Após a minha temporada em França, também descobri que maior parte das padarias usa poolish e não fermento natural para fazer os pães. O Mattias não usa apenas fermento natural nos seus pães e no entanto faz pães com um carácter e sabor extraordinário. Que é isto tudo quer dizer? Não existem nenhumas "golden rules" e o padeiro, seja ele amador ou profissional, deve usar os métodos de fermentação que ache adequados para se obter a textura, consistência e sabor desejado no seu pão.
Noutras notícias, a Zine fez um ano e esqueci-me da data pois estava em Paris ocupadíssimo com o meu curso de cozinha. Espero que no próximo ano, se façam mais posts e que o interesse pelo pão artesanal e com qualidade aumente. Se alguma vez existir a apelidada "revolução do pão" esta só pode partir dos consumidores. As grandes padarias (fábricas é um nome melhor que padaria) não vão ter a iniciativa de mudar a sua maneira de trabalhar. É necessário um reviver das padarias de bairro, mas para isso é necessário que os consumidores estejam preparados para pagar um preço mais elevado pelo pão. Caso contrário a padaria de bairro não pode competir em preço com as grandes superfícies e vai acabar por oferecer o mesmo pão triste que se encontra nas grandes superfícies. 
  
A todos os leitores da Zine desejo um feliz 2012 e espero vê-los por aqui para o ano com o mesmo entusiasmo e paixão de sempre pelo pão!

Fotografias gentilmente cedidas por Sébastien Boudet do Brödpassion.


Em breve a Zine vai andar por outras paragens. Porque a panificação, ou devo dizer dizer boulangerie, não é o meu único amor vou passar as próximas semanas em Paris a estudar culinária na famosa Le Cordon Bleu. Os leitores mais foodies vão reconhecer que foi a escola onde a Julia Child estudou. Quando me passou pela cabeça a ideia de estudar culinária, nunca tive outra escola nem outra cidade em mente. 

Isto não significa que a Zine vai ficar parada, mas vou ter menos tempo para fazer pão e testar novas receitas. No entanto, com a quantidade de padarias artesanais que existem em Paris tenho bastantes coisas para visitar. Vai ser fantástico poder visitar a Poilâne, apesar de já me terem alertado que vai ser quase impossível visitar a padaria em si e ver onde se faz o pão... mas vou tentar. Vai ser uma oportunidade para comercroissants a sério, croissants au beurre, e respirar aquele joie de vivre tão francês. (Já agora, não perderam a receita de croissants do mestre Eric Kayser, pois não? Podem substituir o fermento por isco, aumentado os tempos de fermentação, mas não é bem a mesma coisa. Deixo ao vosso risco.)

Se tiverem dicas sobre coisas que não devo perder, estejam à vontade para deixar comentários.

Se quiserem seguir as aventuras do padeiro que virou (temporariamente) estudante de culinária francesa podem segui-las no meu outro blogue: Le Cordon Bleu & Me.

À bientôt!


Na passada noite de sexta-feira para sábado tive a oportunidade de "trabalhar" numa padaria a sério. Era algo que já ansiava fazer há uns tempos e mexendo uns cordéis a oportunidade proporcionou-se: o padeiro (o profissional) costuma estar sozinho nessas noites e uma ajuda vinha a calhar. Às duas da manhã lá fui eu preparado para dar o meu melhor - não posso oferecer mais que isso - e passar a noite entre massas a levedar.

Os bolos são os primeiros a entrar para o forno, antes disso pincelados com ovos batidos com um pouco de água e sal e polvilhados com pärlsocker ou com uma mistura de açúcar e cardamomo.  Eu, bastante preocupado em que a quantidade polvilhada fosse uniforme em cada um perguntava ao padeiro "Está bom assim?" ao que ele responde "Isto é uma forma de artesanato, cada bolo é único. Não existe uma quantidade certa.". Passados uns vinte minutos no forno, sem vapor, estavam prontos os famosos bolos de canela suecos (kanelbullar) e os bolos de cardamomo (kardemummabullar). Seguiram-se as coqueluches da viennoisserie: o croissant, opain au chocolat e o croissant aux amandes. Estes últimos, recheados com massa de amêndoa e polvilhados com lascas de amêndoa e açúcar em pó, são deliciosos. Até comi dois. 

Após os bolos estarem feitos, chegou o grande momento: o pão. Pão de maçã, pão de beterraba com queijo feta, pão de centeio com avelãs e baguette foram alguns dos pães que se cozeram naquela noite. Ao todo, e se bem me recordo, foram doze tipos de pão. É fantástico ver alguém que ama a sua profissão a trabalhar, a maneira como todos os movimentos já estavam tão mecanizados, a chamada "economia de movimentos". Formidável. Eu tentava acompanhar o mesmo ritmo, mas sem sucesso. Quando o padeiro tendia dois boules ao mesmo tempo, um com cada mão, tentava eu tender umboule com ambas as mãos. Falta de prática. Durante o resto da noite, falámos de livros sobre pão, sobre características dos iscos e como devem ser tratados, falámos sobre o que implica ter uma padaria artesanal, sobre fornos e outras máquinas, sobre como melhorar a padaria, os custos e os lucros de uma actividade deste tipo e outros tantos assuntos.

Estava à espera de ter alguma revelação, uma epifânia sobre o que faz o pão artesanal ser tão bom. Ao invés disso, cheguei à conclusão que os padeiros artesanais não têm nenhum truque mágico, mas sim vários anos de experiência e sabedoria. Os padeiros profissionais conseguem olhar para um pão cozido e dizer se fermentou demasiado, se houve algum problema quando se amassou o pão, etc. Todas as técnicas que costumo falar aqui no blogue, todos os passos numa receita são exactamente os mesmos que fizémos.

Também esperava outra epifânia num nível mais pessoal, o descobrir que se calhar é isto "que quero fazer quando for grande". Sendo honesto, não o senti durante a noite de trabalho, nem no dia a seguir. Pensei para mim que não se pode avaliar num dia de trabalho se o meu futuro passa por isto. Contudo, agora que se passaram uns dias, as ideias assentaram e dou por mim a ansiar por poder trabalhar outra vez naquela pequena padaria onde o pão é feito com respeito à tradição, com os melhores ingredientes, com dedicação e com amor.

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